sexta-feira, 8 de junho de 2007

Nelson Rodrigues: o homem e a obra *



“Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico.” (Nelson Rodrigues)

Nelson Rodrigues tinha a capacidade de mergulhar nas profundezas sombrias e trazê-las a tona de forma brutal num estilo quase que sarcástico como apenas uma pessoa com um forte poder de julgamento e crítica poderia. O retrato cru dessa natureza instintiva do homem que toca o absurdo, ganha um tom irônico, crítico, característico de sua arte quando trazido para o quotidiano mais banal.
A pessoa e a arte de Nelson Rodrigues sempre provocaram estranhamento. Segundo consta em sua biografia, quando menino já possuia certo ar melancólico de afastamento da realidade. Ao contrário dos irmãos, era avesso aos esportes, sua paixão pelo futebol era apenas de espectador, não se animava a ir à praia e precisava ser subornado para que participasse de brincadeiras na garagem.
“Uma atmosfera de fog envolvia Nelson à medida que ele entrava na adolescência. Estava ficando depressivo, como costumam ficar os meninos nessa idade — só que, nele, essa depressão era dramática, de tango, porque ele só faltava subir num caixote para proclamá-la. Vivia suspirando pelos cantos e, às vezes, soltava uma exclamação que certamente lera nos livros, mas que ninguém sabia se era sério ou não: ‘Eu sou um triste!’ — uma frase que, aliás, continuaria repetindo pela vida afora”. (Castro, 1992: 40).
Nelson Rodrigues, através de sua obra vai travar uma luta contra a moral sombria, dogmática e repressora de sua época, que através de costumes e reações hipócritas tenta esconder uma sexualidade cada vez mais deixada à sombra: a sexualidade perversa, aspecto da personalidade totalmente submerso no inconsciente e em suas bases instintivas.
Segundo sua biografia, Nelson teria presenciado o assassinato do irmão, episódio extremamente traumático em sua vida. O fato teria ocorrido quando este tinha 17 anos na redação de jornal do seu pai onde Nelson trabalhava. A causa da morte seria uma matéria que havia saído no dia anterior revelando o adultério por parte da esposa de um casal de alta sociedade. Eis que então, essa senhora vai até o jornal com o intuito de se vingar do pai de Nelson e não o encontrando, dispara um tiro contra o irmão. Dois meses mais tarde, o pai morre profundamente deprimido pelo assassinato do filho em seu lugar, de derrame cerebral. E nesse drama novelesco vemos novamente a questão da hipocrisia social que parece impulsionar o autor no seu trabalho de despir seus personagens até de suas personas, até as raízes sombrias e arquetípicas.
Mas, o conflito com o pensamento coletivo moralista é também interno, pois, enquanto homem de sua época, Nelson era uma personalidade marcada por grandes contradições, um conservador que ao mesmo tempo proclamava a liberdade.

“Sou um homem que cultiva velhos sentimentos de culpa. Lembro-me de coisas que fiz aos sete, oito anos. Não tenho ilusões. O canalha é uma dimensão que existe em mim ou em qualquer um. Eis que, nas minhas insônias, me pergunto: -‘O que é que eu fiz?’.” (Castro, org., 1997:48).
Os vários relacionamentos extra-conjugais mantidos ao longo da vida paralelos à um casamento indissolúvel com uma mulher bastante idealizada revela um drama comum do homem cristão que dividido, não consegue integrar os aspectos telúricos e espirituais de sua anima.
Os aspectos telúricos, ligados ao corpo, aparecem contaminados pela sombra, o que se revela nos componentes histéricos presentes em quase todos os personagens femininos de Nelson. A imagem da mulher ainda bastante presa à imagem materna gera uma cisão em que pureza e sexualidade se antagonizam. Em Álbum de Família o personagem Guilherme, referindo-se a mãe, diz que esta não poderia tomar conta da sua irmã pois “é uma mulher casada, conhece o amor — não é pura.” A irmã, no caso aparece como um duplo virginal da mãe.
Nas palavras de Nelson:
“Só não estamos de quatro, urrando no bosque, porque o sentimento de culpa nos salva.” (Castro, org., 1997:48).
Rui Castro que escreveu uma biografia sobre o autor relata algumas manifestações do insconsciente em Nelson: “…seus apelos à sensibilidade ficaram tão agudos que começou a enxergar miragens. Em ‘O elogio do silêncio’, de 23 de fevereiro, Nelson viu ‘flores que se transformam em lindos seios de mulher, seios que acabam como botões de rosa’. Em ‘A felicidade’, de 8 de março, comparou a lua a ‘uma prostituta velha que ainda se julga apetecível para rapazes que zombam dela’. E em ‘Palavras ao mar’, de 22 de março, descreveu ondas que ‘depois de altanarem num arremesso formidável, caem ruidosamente no torvelinho branco de espumas, parecendo um bando de mulheres se contorcendo em convulsões de amor’.” (1992: 65)
A estreita relação com o inconsciente conduziu o autor para além da dimensão pessoal e por tocar em questões coletivas seu teatro chocava, incomodava, gerava polêmica. É no seu trabalho como dramaturgo que Nelson Rodrigues vai transcender a oposição e conflito. Através de seu dom hermeneutico de escritor, que lhe permite comunicar o que se passa nos subterrâneos da psique, ele consegue unir profano e sagrado. “Mais importante são os ovários da alma. Os verdadeiros órgãos sexuais estão na alma!” (Castro, org., 1997:12)

(* Texto extraído, com algumas modificações, do artigo "Nelson Rodrigues e o teatro do desagradável: um olhar simbólico sobre a vida e a obra do autor", de Cristiana Boavista)

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